O murmúrio é a alma de um Poeta que se finou
e anda agora à procura, pela Serra,
da verdade dos sonhos que na Terra
nunca alcançou.
E outros murmúrios de água escuto, mais além:
os Poetas embalam sua Mãe,
que um dia os embalou.
Na noite calma,
a poesia da Serra adormecida
vem recolher-se em mim.
E o combate magnífico da Cor,
que eu vi de dia;
e o casamento do cheiro a maresia
com o perfume agreste do alecrim;
e os gritos mudos das rochas sequiosas que o Sol castiga
-passam a dar-se em mim.
E todo eu me alevanto e todo eu ardo.
Chego a julgar a Arrábida por Mãe,
quando não serei mais que seu bastardo.
A minha alma sente-se beijada
pela poalha da hora do Sol-pôr;
sente-se a vida das seivas e a alegria
que faz cantar as aves na quebrada;
e a solidão augusta que me fala
pela mata cerrada,
aonde o ar no peito se me cala,
desceu da Serra e concentrou-se em mim.
E eu pressinto que a Noite, nesse instante,
se vai ajoelhar…
… … … … … … … … … … … …
… … … … … … … … … … … …
Ai não te cales, água murmurante!
Ai não te cales, voz do Poeta errante!,
-senão a Serra pode despertar.
In SERRA-MÃE, Ática, 1991
Alcatifei-me de veludo azul,
fiz pintar a Ternura os meus salões,
e pus cortinas de tule...
Mas não chamei grandes orquestras
nem um clarim, a proclamá-la:
mandei tocar, em mim,
uma música assim de procissão
que levou os meus sentidos
a nem sequer se sentirem, de embevecidos...
Hoje, cá dentro, houve festa...
E, se houve festa e veludos,
e musica azul, e tudo
quanto digo,
foi somente porque a Graça
desceu hoje a visitar-me.
E eu, que vivo de Infinito
as raras vezes que vivo;
eu, que me sinto cativo
no pouco espaço que habito,
onde a presença de dois,
por ser demais, me embaraça,
deixei logo o meu lugar,
para dar lugar à Graça.
Não tinha pés: tinha passos;
não tinha boca: era beijos;
não tinha voz: era como
se o folhado e a maresia
se tivessem combinado
pra cantar «Ave, Maria...»
Foi então que vivi; então que vi
os poucos metros que vão
da minha Serra às Estrelas:
é que eu, sendo tão pequeno
que nem às vezes me encontro,
andava ali a pairar,
e o meu fim estava nelas
e o meu princípio no Mar.
A Graça, cá dentro, era
a varinha de condão
que me guiava no Ar.
E que bem me conduzia!
Parecia que eu sentia
as mesmas ânsias e a alegria
da Noite quando, no ventre,
já sente os gritos do Dia.
E eu me vi (que não sei bem
se era eu ou se era a Graça
quem p’los meus olhos olhava);
e eu me vi, que me tomava
em tons de rosa esmaiada
—barra da saia da Tarde
que ainda bem não morreu
e já de si tem saudades;
e fui murmúrio do Mar
que reza o que eu lhe ensinei;
e fui perfume exalado
dos matos da minha Serra
— perfume que, modelado
às formas que tens, sem tê-las,
mostrou teu corpo perfeito:
esse perfume que eu era
desenhava-te o perfil;
por olhos, tinhas Estrelas;
meu carinho de pensar-te
era a curva do teu peito.
E a minha varinha maga
do perfume fez um grito
da Serra, ébria de si;
e eu, nesse grito, subi;
bati às portas do Céu,
mas era cedo demais
e caí.
Para pairar, em poalha
que não é oiro, mas sim
a palavra com que Deus
fechou-me as portas do Céu;
beijo a minha criação
quando beijo a minha Serra;
sou passadeira de mim
e nego, na Luz que sou,
que seja feito de terra.
Ai quem me dera morrer!
Liberto do que não sou,
viver a única vida
pra que Deus me destinou!
Dá-me a vida que me mate, Senhor!
Fica-me dentro pra sempre,
a guiar-me pelo Além!
E tu perdoa, se eu morro,
que é p’ra nascer, minha Mãe!
Agora, só,
que é o meu corpo terra confundida
na terra desta Serra minha Mãe;
agora, só,
a minha voz que sempre cantou mal
ao Céu se eleva...
Agora, só,
que no ventre da Serra minha Mãe repousa
meu corpo de Poeta,
de Poeta mudo em vida, por ausente
do ventre maternal os nove meses;
agora, só, claríssima se eleva
a minha voz-louvor,
a minha voz-carícia a minha Mãe,
ao Céu...
Agora, só,
que os meus lábios são terra de onde nascem
as moitas de folhado e de alecrim,
a minha voz saudosa de cantar
se elevará
até aonde o Céu tem cor e fim.
Se elevará a minha voz, perfume
desprendido, suavíssimo, dos matos que surgiram de mim...
Agora, só,
que sou terra na terra misturada,
que a minha voz é voz de rosmaninho,
eu poderei tratar por tu
a meu Irmão Frei Agostinho...
Agora, só, a meu Irmão,
que comigo nasceu naquele Dia
em que ao Céu se entregou,
ébria de Sol e Maresia,
nossa Mãe Serra..
In SERRA-MÃE , Ática, 1991
Tudo se passa,
quando a manhã nasce a Serra,
como se uma flor abrisse
e pelo ar
o seu perfume subisse...
"desabrochar", de Sebastião da Gama
“Pelo sonho é que vamos”, “Serra- Mãe”, “Loas a Nossa Senhora da Arrábida” e o «O segredo é amar» são obras que revelam um autor único que privilegia a relação com a Arrábida.
«O mais difícil não é ir à Arrábida (...). Difícil, difícil, é entendê-la: porque boas praias, boas sombras e boas vistas há-as em toda a parte para os bons banhistas, os bons amigos de bem comer, os bons turistas; o que não há em toda a parte é a religiosidade que dá à Serra da Arrábida elevação e sentido. (...) Mas é fora de dúvida que o visitante, se o não apreendeu, saiu da Arrábida sem sequer ter entrado nela verdadeiramente!
Vá sozinho, suba ao Convento, que é onde o espírito da Serra converge e como que ganha forma, leve, se quiser, os versos de Agostinho (...) e experimente como afinal é fácil estar a sós com Deus», escreveu Sebastião da Gama.
(1540-1619), que escreveu elegias e sonetos onde a serra está bem presente. Nascido Agostinho Pimenta, adoptou o nome Frei Agostinho da Cruz aos vinte e um anos de idade quando se tornou frade capuchinho. Depois de passar pelo Convento de Santa Cruz em Sintra e pelo Convento de Ribamar na Lourinhã, entrou para o Convento da Arrábida onde esteve vinte anos. As suas obras foram divulgadas só no século XVIII, quando em 1771 foi publicada a colectânea designada ´´Obras´´.
«Sozinho a ouvir o mar, que não diz nada.
Férias do mundo e de quem lá anda.
Concha de ouriço, mas desabitada,
Aberta no lençol da areia branda.
Não se lembrem de mim esta semana!
Matem o Cristo, e ele que ressuscite!
Eu, nesta angústia humana ou desumana,
Quero apenas que o sono me visite.»
Arrábida, Páscoa de 1952
Arde por Galateia branca e loura
Sereno, pescador pobre, forçado
de üa estrela cruel que à míngua moura.
Os outros pescadores têm lançado
no Tejo as redes; ele só fazia
este queixume ao vento descuidado:
«Quando virá, fermosa Ninfa, o dia
em que te possa dar a conta estreita
desta doudice triste e vã porfia?
Não vês que me foge a alma e que me enjeita,
buscando num só riso da tua boca,
nos teus olhos azuis, mansa colheita?
Se a esse espírito algüa mágoa toca,
se de Amor fica nele üa pegada,
que te vai, Galateia, nesta troca?
Dar-te-ei minha alma; lá ma tens roubada;
não ta demandarei; dá-me por ela
üa só volta de olhos descuidada.
Se muito te parece, e minha estrela
não consentir ventura tão ditosa,
dou-te as asas do Amor perdidas nela.
Que mais te posso dar, Ninfa fermosa,
inda que o mar de aljôfar me cubrira
toda esta praia leda e graciosa?
Amansam ondas, quebra o vento a ira;
minha tormenta triste não sossega;
arde o peito em vão, em vão suspira.
Ao romper d'alva anda a névoa cega
sobre os montes da Arrábida viçosos,
enquanto a eles a luz do sol não chega.
Eu vejo aparecer outros fermosos
raios, que a graça e cor ao céu roubaram;
ficam meus olhos cegos mais saudosos.
Quantas vezes as ondas se encresparam
com meus suspiros! Quantas com meu pranto
se pararam com mágoa e me escutaram!
Se na força da dor a voz levanto,
e ao som do remo que a água vai ferindo
por alta lüa meu cuidado canto,
os maviosos delfins me estão ouvindo;
a noite sossegada; o mar, calado.
Só, Galateia, foges e vás rindo.
Estranhas, porventura, o mar cercado
da fraca rede, a barca ao vento solta,
e um pobre pescador aqui lançado?
Antes que o sol dê no céu üa volta
se pode melhorar minha ventura,
como acontece aos outros, n'água envolta.
Igual preço não é da fermosura
areia de ouro, que o rico Tejo espraia,
mas um amor que para sempre dura.
Vejam teus olhos, bela Ninfa, a praia;
verás teu nome na mimosa areia.
Nunca sobre ele o mar com fúria saia,
que até agora nem vento e ar salteia!
Três dias há que escrito aqui o deixou
Amor, guardando-o a toda a força alheia.
Ele com suas mãos mesmo ajudou
escolher estas conchas que, guardando,
üa e üa para ti só ajuntou.
Um ramo te colhi de coral brando;
antes que o ar lhe desse, parecia
o que eu de tua boca estou cuidando.
Ditoso se o soubesse inda algum dia!