ARRÁBIDA LITERÁRIA

Sebastião da Gama

 

  • SERRA-MÃE

     
     
    O agoiro do bufu, nos penhascos,
    foi o sinal da Paz.
    O Silencio baixou do Céu,
    Mesclou as cores todas o negrume,
    o folhado calou o seu perfume,
    e a Serra adormeceu.
    Depois, apenas uma linha escura
    e a nódoa branca de uma fonte amiga;
    a fazer-me sedento, de a ouvir,
    a água, num murmúrio de cantiga,
    ajuda a Serra a dormir.

    O murmúrio é a alma de um Poeta que se finou
    e anda agora à procura, pela Serra,
    da verdade dos sonhos que na Terra
    nunca alcançou.

    E outros murmúrios de água escuto, mais além:
    os Poetas embalam sua Mãe,
    que um dia os embalou.

    Na noite calma,
    a poesia da Serra adormecida
    vem recolher-se em mim.
    E o combate magnífico da Cor,
    que eu vi de dia;
    e o casamento do cheiro a maresia
    com o perfume agreste do alecrim;
    e os gritos mudos das rochas sequiosas que o Sol castiga
    -passam a dar-se em mim.

    E todo eu me alevanto e todo eu ardo.
    Chego a julgar a Arrábida por Mãe,
    quando não serei mais que seu bastardo.

    A minha alma sente-se beijada
    pela poalha da hora do Sol-pôr;
    sente-se a vida das seivas e a alegria
    que faz cantar as aves na quebrada;
    e a solidão augusta que me fala
    pela mata cerrada,
    aonde o ar no peito se me cala,
    desceu da Serra e concentrou-se em mim.

     

  • Untitled-2

    E eu pressinto que a Noite, nesse instante,
    se vai ajoelhar…
    … … … … … … … … … … … …
    … … … … … … … … … … … …

    Ai não te cales, água murmurante!
    Ai não te cales, voz do Poeta errante!,

    -senão a Serra pode despertar.

    In SERRA-MÃE, Ática, 1991

  • VIDA

    Hoje, cá dentro, houve festa...

    Alcatifei-me de veludo azul,
    fiz pintar a Ternura os meus salões,
    e pus cortinas de tule...

    Mas não chamei grandes orquestras
    nem um clarim, a proclamá-la:
    mandei tocar, em mim,
    uma música assim de procissão
    que levou os meus sentidos
    a nem sequer se sentirem, de embevecidos...

    Hoje, cá dentro, houve festa...
    E, se houve festa e veludos,
    e musica azul, e tudo
    quanto digo,
    foi somente porque a Graça
    desceu hoje a visitar-me.

    E eu, que vivo de Infinito
    as raras vezes que vivo;
    eu, que me sinto cativo
    no pouco espaço que habito,
    onde a presença de dois,
    por ser demais, me embaraça,
    deixei logo o meu lugar,
    para dar lugar à Graça.

    Não tinha pés: tinha passos;
    não tinha boca: era beijos;
    não tinha voz: era como
    se o folhado e a maresia
    se tivessem combinado
    pra cantar «Ave, Maria...»

    Foi então que vivi; então que vi
    os poucos metros que vão
    da minha Serra às Estrelas:
    é que eu, sendo tão pequeno
    que nem às vezes me encontro,
    andava ali a pairar,
    e o meu fim estava nelas
    e o meu princípio no Mar.

    A Graça, cá dentro, era

    a varinha de condão
    que me guiava no Ar.
    E que bem me conduzia!
    Parecia que eu sentia
    as mesmas ânsias e a alegria
    da Noite quando, no ventre,
    já sente os gritos do Dia.

  •  

    E eu me vi (que não sei bem
    se era eu ou se era a Graça
    quem p’los meus olhos olhava);
    e eu me vi, que me tomava
    em tons de rosa esmaiada
    —barra da saia da Tarde
    que ainda bem não morreu
    e já de si tem saudades;
    e fui murmúrio do Mar
    que reza o que eu lhe ensinei;
    e fui perfume exalado
    dos matos da minha Serra
    — perfume que, modelado
    às formas que tens, sem tê-las,
    mostrou teu corpo perfeito:
    esse perfume que eu era
    desenhava-te o perfil;
    por olhos, tinhas Estrelas;
    meu carinho de pensar-te
    era a curva do teu peito.

    E a minha varinha maga
    do perfume fez um grito
    da Serra, ébria de si;
    e eu, nesse grito, subi;
    bati às portas do Céu,
    mas era cedo demais
    e caí.

    Para pairar, em poalha
    que não é oiro, mas sim
    a palavra com que Deus
    fechou-me as portas do Céu;
    beijo a minha criação
    quando beijo a minha Serra;
    sou passadeira de mim
    e nego, na Luz que sou,
    que seja feito de terra.

    Ai quem me dera morrer!
    Liberto do que não sou,
    viver a única vida
    pra que Deus me destinou!
    Dá-me a vida que me mate, Senhor!
    Fica-me dentro pra sempre,
    a guiar-me pelo Além!

    E tu perdoa, se eu morro,
    que é p’ra nascer, minha Mãe!


     

     

  • ELEGIA PARA A MINHA CAMPA

     

    Agora, só,

    que é o meu corpo terra confundida
    na terra desta Serra minha Mãe;
    agora, só,
    a minha voz que sempre cantou mal
    ao Céu se eleva...

    Agora, só,
    que no ventre da Serra minha Mãe repousa
    meu corpo de Poeta,
    de Poeta mudo em vida, por ausente
    do ventre maternal os nove meses;
    agora, só, claríssima se eleva
    a minha voz-louvor,
    a minha voz-carícia a minha Mãe,
    ao Céu...

     


  • Agora, só,
    que os meus lábios são terra de onde nascem
    as moitas de folhado e de alecrim,
    a minha voz saudosa de cantar
    se elevará
    até aonde o Céu tem cor e fim.
    Se elevará a minha voz, perfume
    desprendido, suavíssimo, dos matos que surgiram de mim...

    Agora, só,
    que sou terra na terra misturada,
    que a minha voz é voz de rosmaninho,
    eu poderei tratar por tu
    a meu Irmão Frei Agostinho...
    Agora, só, a meu Irmão,
    que comigo nasceu naquele Dia
    em que ao Céu se entregou,
    ébria de Sol e Maresia,
    nossa Mãe Serra..

    In SERRA-MÃE , Ática, 1991

Tudo se passa,
quando a manhã nasce a Serra,
como se uma flor abrisse
e pelo ar
o seu perfume subisse...

"desabrochar", de Sebastião da Gama

“Pelo sonho é que vamos”, “Serra- Mãe”, “Loas a Nossa Senhora da Arrábida” e o «O segredo é amar» são obras que revelam um autor único que privilegia a relação com a Arrábida.

«O mais difícil não é ir à Arrábida (...). Difícil, difícil, é entendê-la: porque boas praias, boas sombras e boas vistas há-as em toda a parte para os bons banhistas, os bons amigos de bem comer, os bons turistas; o que não há em toda a parte é a religiosidade que dá à Serra da Arrábida elevação e sentido. (...) Mas é fora de dúvida que o visitante, se o não apreendeu, saiu da Arrábida sem sequer ter entrado nela verdadeiramente!
Vá sozinho, suba ao Convento, que é onde o espírito da Serra converge e como que ganha forma, leve, se quiser, os versos de Agostinho (...) e experimente como afinal é fácil estar a sós com Deus», escreveu Sebastião da Gama.

Frei Agostinho da Cruz - Sonetos e Elegias

 

(1540-1619), que escreveu elegias e sonetos onde a serra está bem presente. Nascido Agostinho Pimenta, adoptou o nome Frei Agostinho da Cruz aos vinte e um anos de idade quando se tornou frade capuchinho. Depois de passar pelo Convento de Santa Cruz em Sintra e pelo Convento de Ribamar na Lourinhã, entrou para o Convento da Arrábida onde esteve vinte anos. As suas obras foram divulgadas só no século XVIII, quando em 1771 foi publicada a colectânea designada ´´Obras´´.

 

  • Poesia - Elegia II(Da Arrábida)

     
     
    Alta Serra deserta, donde vejo
    As águas do Oceano duma banda,
    E doutra já salgadas as do Tejo:
    Aquela saüdade que me manda
    Lágrimas derramar em toda a parte,
    Que fará nesta saüdosa, e branda?
    Daqui mais saüdoso o sol se parte;
    Daqui muito mais claro, mais dourado,
    Pelos montes, nascendo, se reparte.
    Aqui sôbolo mar dependurado
    Um penedo sobre outro me ameaça
    Das importunas ondas solapado.
    Duvido poder ser que se desfaça
    Com água clara, e branda a pedra dura
    Com quem assim se beija, assim se abraça.
    Mas ouço queixar dentro a Lapa escura,
    Roídas as entranhas aparecem
    Daquela rouca voz, que lá murmura.
    Eis por cima da rocha áspera descem
    Os troncos meio secos encurvados,
    Eis sobem os que neles enverdecem.
    Os olhos meus dali dependurados,
    Pergunto ao mar, às plantas, aos penedos
    Como, quando, por quem foram criados?
    Respondem-me em segredo mil segredos,
    Cujas primeiras letras vou cortando
    Nos pés doutros mais verdes arvoredos.
    Assim com cousas mudas conversando,
    Com mais quietação delas aprendo
    Que outras que há, ensinar querem falando.
    Se pelejo, se grito, se contendo
    Com armas, com razão, com argumentos,
    Elas só com calar ficam vencendo.
    Ferido de tamanhos sentimentos
    Fico fora de mim, fico corrido
    De ver sobre que fiz meus fundamentos.
    Ali me chamo cego, ali perdido,
    Ali por tantos nomes me nomeio,
    Quantos por culpas tenho merecido.
    Ali gemo, e suspiro, ali pranteio;
    Ali geme, e suspira, ali pranteia
    O monte, e vai de meus suspiros cheio.
    Ali me faz pasmar, ali me enleia
    Quanto colhendo estou da saüdade,
    Que por toda esta terra se semeia.
    Ora me ponho a rir da vaïdade,
    Ora triste a chorar com quanto estudo
    Erros solicitei da mocidade.
    Tudo se muda enfim, muda-se tudo,
    Tudo vejo mudar cada momento:
    Eu de mal em pior também me mudo.
    Soía levantar meu pensamento
    Assentado sobre estas penedias
    Duras, eu duro mais nelas me assento.
    Punha-me a ver correr as águas frias
    Por cima de alvos seixos repartidas,
    Que faziam tremer ervas sombrias.
    As flores, que levava já colhidas,
    Passando pelos vales enjeitava
    Por outras doutra nova cor vestidas.
    O livre passarinho, que voava,
    Cantando para o céu deixando a terra,
    Da terra para o céu me encaminhava.
    Cuidei que se esquecesse nesta Serra
    A dura imiga minha natureza;
    Mas donde quer que vou lá me faz guerra.
    Oh! quem vira naquela fortaleza
    Rodeada de fogo de amor puro,


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    Daquele amor divino esta alma acesa!
    Quão firme, e quão quieto, e quão seguro
    No campo se pusera em desafio!
    E quão brando sentira o ferro duro!
    Mas se agora de mim me não confio,
    Se fujo, se me escondo, se me temo,
    É porque sinto fraco o peito frio.
    Alevantam-se os mares; e pasmo, e tremo:
    Vejo vento contrário, desfaleço,
    A corrente das mãos me leva o remo.
    Confesso minha culpa, bem conheço
    Que por mais graves males que padeça
    Menos padecerei do que mereço.
    Mandais, Senhor, que busque, bata, e peça,
    Eu busco, bato, e peço a vós, Senhor,
    Sem haver cousa em mim que vos mereça.
    Com os braços na Cruz, meu Redentor,
    Abertos me esperai, co lado aberto,
    Manifestos sinais do vosso amor.
    Ah! quem chegasse um dia de mais perto
    A ver cos olhos de alma essa ferida,
    Que esse coração mostra descoberto!
    Esse, que por salvar gente perdida
    De tanta piedade quis usar,
    Que deu nas suas mãos a própria vida.
    A sangue nos quisestes resgatar
    De tão cruel, e duro cativeiro,
    Vendido fostes vós por nos comprar.
    Padecestes por nós, manso Cordeiro,
    Pisado, preso, e nu entre ladrões,
    Ardendo o fogo posto no madeiro:
    Arçam postos no fogo os corações.

Orlando Ribeiro

 

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    “Arrábida. Esboço geográfico”, Revista da Faculdade de Letras, t. IV, n.ºs 1 e 2, Lisboa, 1937, p. 131
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    Orlando Ribeiro (1911-1997), Geógrafo, historiador e etnógrafo. Poeta. Professor universitário.
    http://www.orlando-ribeiro.info/home.htm

Alexandrina Pereira

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Alexandre Herculano

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“Salve, oh valle do sul, saudoso e bello!
Salve, oh patria da paz, deserto sancto,
Onde não ruge a grande voz das turbas!
Sólo sagrado a Deus, podesse ao mundo
O poeta fugir, cingir-se ao ermo,
Qual ao freixo robusto a fragil hera,
E a romagem do tumulo cumprindo,
Só conhecer, ao despertar na morte,
Essa vida sem mal, sem dôr, sem termo,
Que íntima voz contínuo nos promette
No transito chamado o viver do homem.”

Miguel Torga

Refúgio


«Sozinho a ouvir o mar, que não diz nada.
Férias do mundo e de quem lá anda.
Concha de ouriço, mas desabitada,
Aberta no lençol da areia branda.
Não se lembrem de mim esta semana!
Matem o Cristo, e ele que ressuscite!
Eu, nesta angústia humana ou desumana,
Quero apenas que o sono me visite.»

 

Arrábida, Páscoa de 1952

Luís de Camões

  • Piscatória

     
     

    Arde por Galateia branca e loura
    Sereno, pescador pobre, forçado
    de üa estrela cruel que à míngua moura.

    Os outros pescadores têm lançado
    no Tejo as redes; ele só fazia
    este queixume ao vento descuidado:

    «Quando virá, fermosa Ninfa, o dia
    em que te possa dar a conta estreita
    desta doudice triste e vã porfia?

    Não vês que me foge a alma e que me enjeita,
    buscando num só riso da tua boca,
    nos teus olhos azuis, mansa colheita?

    Se a esse espírito algüa mágoa toca,
    se de Amor fica nele üa pegada,
    que te vai, Galateia, nesta troca?

    Dar-te-ei minha alma; lá ma tens roubada;
    não ta demandarei; dá-me por ela
    üa só volta de olhos descuidada.

    Se muito te parece, e minha estrela
    não consentir ventura tão ditosa,
    dou-te as asas do Amor perdidas nela.

    Que mais te posso dar, Ninfa fermosa,
    inda que o mar de aljôfar me cubrira
    toda esta praia leda e graciosa?

    Amansam ondas, quebra o vento a ira;
    minha tormenta triste não sossega;
    arde o peito em vão, em vão suspira.

    Ao romper d'alva anda a névoa cega
    sobre os montes da Arrábida viçosos,
    enquanto a eles a luz do sol não chega.

     

     

  •  

    Eu vejo aparecer outros fermosos
    raios, que a graça e cor ao céu roubaram;
    ficam meus olhos cegos mais saudosos.

    Quantas vezes as ondas se encresparam
    com meus suspiros! Quantas com meu pranto
    se pararam com mágoa e me escutaram!

    Se na força da dor a voz levanto,
    e ao som do remo que a água vai ferindo
    por alta lüa meu cuidado canto,

    os maviosos delfins me estão ouvindo;
    a noite sossegada; o mar, calado.
    Só, Galateia, foges e vás rindo.

    Estranhas, porventura, o mar cercado
    da fraca rede, a barca ao vento solta,
    e um pobre pescador aqui lançado?

    Antes que o sol dê no céu üa volta
    se pode melhorar minha ventura,
    como acontece aos outros, n'água envolta.

    Igual preço não é da fermosura
    areia de ouro, que o rico Tejo espraia,
    mas um amor que para sempre dura.

    Vejam teus olhos, bela Ninfa, a praia;
    verás teu nome na mimosa areia.
    Nunca sobre ele o mar com fúria saia,

    que até agora nem vento e ar salteia!
    Três dias há que escrito aqui o deixou
    Amor, guardando-o a toda a força alheia.

    Ele com suas mãos mesmo ajudou
    escolher estas conchas que, guardando,
    üa e üa para ti só ajuntou.

    Um ramo te colhi de coral brando;
    antes que o ar lhe desse, parecia
    o que eu de tua boca estou cuidando.
    Ditoso se o soubesse inda algum dia!

     

A Serra da Arrábida na poesia portuguesa

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O centro de Estudos Bocageanos publicou no ano de 2014 uma obra que reúne inúmeros poetas portugueses, unidos na sensibilidade à Serra-Mãe. Trata-se de uma 2ª edição revista e acrescentada de uma compilação organizada em 2002 por António Mateus Vilhena e Daniel Pires, e que responde à necessidade por muitos sentida e expressa de conhecer outros autores que tenham a Arrábida como musa inspiradora.
Fazem parte desta recolha nomes canónicos da literatura, como Sebastião da Gama, Frei Agostinho da Cruz, Teixeira de Pascoaes, Camões, D. Francisco Manuel de Melo, Miguel Torga, Alexandre Herculano, Matilde Rosa Araújo, mas também José Afonso, António Osório, Fernando Gandra, Helder Moura Pereira e ainda um vasto leque de poetas locais e regionais.
A obra inclui textos inéditos de vários autores, entre os quais Sebastião da Gama, Manuel Maria Portela, Augusto Casimiro e Inácio Monteiro, e abrange um período temporal muito lato: desde o séc. XVI até aos nossos dias.